Porque escrevo



Por que escrevo I 

Escrevo porque carrego no céu da boca o gosto da letra urdida, a maldição do pão aziago travado na garganta do verbo, o fel que escorre dos gritos do desatino, a rigidez das mortes de cada estrela que comi. 
Escrevo porque sou feita de impossibilidades, todas estampadas no meu corpo como piche, como betume na sola da alma.
Escrevo para cantar as minhas sentenças, como cantarei:- a última lua, os amores  despertencidos, os segredos, os mistérios, as fundezas, os vazios, esta tanta sozinhez, e esta fome sem nome, este meu desajeito.
Por isto escrevo, para enlouquecer os fantasmas que me habitam, a dançar no esquerdo do peito.  
Escrevo para chorar-me.
Escrevo porque trago em minhas mãos as brasas da vida a queimar... a queimar...
Escrevo para doer-me sobre esta interminável noite de lágrimas!

anadeabrãomerij


Porque Escrevo II 


É no amor demais que escrevo.
Do corpo expulso todas as vozes contidas, na agonia são riscadas as minhas linhas.
A alma insiste em perseguir palavras fugidias,deixo-a de lado e sigo com as falas dos sentidos.
Os Poetas fecundam escritas fartas, versos precisos e exatas rimas, todos nascidos bentos, vingados em glória.
De parcas letras pego o verbo pelas ruas, cato as sobras que deixaram nas esquinas.
Digo apenas do que me rasga o peito, dos incomodamentos ,das dores fincadas no colo do útero dessa minha miúda vida.
Escrevo pra ocupar os vazios, calar os gritos das gentes que se juntaram em mim,uivando, à revelia das rotinas de lua-cheia, misturados nas minhas entranhas, inseridos em cada canto dos meus caminhos.
Carrego nome pequeno que me deram por batismo, nele todos os nomes se emendam aproveitando o encurtamento,grudam-se não como acessórios mas matrizes, transformadas em células vivas.
Meu mundo é dos inconformados e confundidos, não busco por destino as páginas de livros, o riscado das palavras que tenho sai das tintas arrancadas dos ventres que carrego, só careço de papel e lápis para desenhar minhas linhas.
Vou pegar cadeira e mesa, levar matula, sentar na Praça dos Paraíbas, matizando cartas, bilhetes, recados de saudades, mascarando dores com singelas mentiras. Vou contar que a vida vai boa demais, que o Rio de Janeiro é uma maravilha, que as lajes dos puxadinhos foram batidas no final de semana e todos se achegaram, como nas procissões do Padim Cícero.
Que Raimundos encontraram biscates, que Marias conseguiram faxinas, que os meninos tão ficando alegrinhos e sabidos nos aprendizados de ofícios.
Que no Natal vão seguir verdes, pintados dessa esperança tinhosa e atrevida, em Santa Romaria, levando economias suadas, prendas e mimos comprados nos barateamentos das ruas atropelantes do Saara.
Tudo embrulhado na macabéa bondade dessa minha gente Severina.
Para minhas mal traçadas linhas, nenhum outro carecimento é devido que não seja tal sina.

anadeabrãomerij

Um comentário:

  1. Ana querida,
    Gostava de escrever assim.Vc. me colocou a pensar, sabe que nem sei por que escrevo?
    Vou tratar de decobrir.
    J.M. [Portugal]

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